O projeto “Ucrânia além fronteiras: Portugal. Emigração em retratos” apresenta uma série de entrevistas com ucranianos que vivem em Portugal. Este é um projeto de investigação da comunidade ucraniana em Portugal. Sendo um projeto bilingue, por um lado ajuda os ucranianos a conhecerem melhor a vida dos seus compatriotas, as suas histórias, especialmente aqueles que também vivem no estrangeiro, por outro lado, pretende tornar mais visíveis os estrangeiros que vivem na atual sociedade portuguesa, que se caracteriza por uma forte multiculturalidade, na qual os ucranianos ocupam um lugar significativo.
O projeto pretende, ao aprofundar o conhecimento sobre a vida dos ucranianos, entender melhor as dificuldades com que se deparam, o nível de sucesso na integração, como preservam a sua identidade e o impacto que têm na vida portuguesa.
A autora do projeto Galyna Komar sublinha: “Vemos as diferenças entre pessoas e culturas, não como o que nos separa e fecha, mas sim como aquilo que se pode partilhar e conhecer, reconhecendo a diversidade e riqueza cultural do mundo, e do que significa ser humano”.
Autora: Galyna Komar
Fonte: “Ucrânia além fronteiras: Portugal. Emigração em retratos”
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Halyna, conte-nos, por favor, a história de sua vinda. Como é que veio para Portugal? O que a trouxe a este país?
Eu vim para Portugal não porque tivesse querido – nunca pensei sair da Ucrânia, mas aconteceu. Eu tinha amigos ucranianos na Madeira que estavam muito preocupados comigo. Estávamos nos anos noventa, eu estava sozinha com o meu filho e não tínhamos dinheiro para viver até o fim do mês. Então eles disseram-me: “Há uma ilha maravilhosa, a Madeira, onde há falta de músicos. Vai! Ganhas dinheiro…” Eu disse: “Como? Como vou? Como deixo a minha mãe? Estou tão acostumada à minha vida, gosto muito de Kiev. Não quero!” – “Nada disso! Ganhas o dinheiro que precisas para alimentar o teu filho, depois voltas e vais viver como queres.” – “Está bem” – disse eu. A minha mãe deixou-me ir: “Filha, vais trabalhar dois anos, depois voltas”. Há uma história que antecede a esta: uma amiga minha tinha um aluno da Madeira que o Partido Comunista Português enviou para Kiev para estudar música. Por ele ficámos a saber que a Madeira precisava de professores de música. Assim começou, vamos dizer, a “emigração musical de Kiev”, no que à Madeira diz respeito. Nós, cerca de 15 pessoas, pouco a pouco, viemos para a Madeira. Eu não me queria mudar, no início até tinha vergonha por ter deixado o meu país. Era difícil retirar o meu filho de escola secundária onde ele tinha os seus amigos, a sua vida, que, de repente, tinha de deixar.
Foi difícil integrar-se num novo ambiente?
Quando chegámos à Madeira, ficámos muito impressionados com este mundo microscópico – por ser uma ilha. Eu cheguei numa quarta-feira e quinta-feira de manhã comecei a trabalhar, às 9:00 h. Os estudantes esperavam por mim. Foi como um teste, mas esta temporada deu-me muito. Os alunos ajudaram-me muito. No início foi muito difícil. Imagine-se, vinha uma pessoa que quase não falava nem inglês nem português.
Então, quando pensou em mudar-se definitivamente, começou a aprender português?
Sim, comecei a aprender um pouco quando tratava de documentos. Na altura não havia a embaixada de Portugal em Kiev, tive de ir a Moscovo. Tive de ir a Moscovo duas vezes com os documentos, por isso a nossa mudança foi adiada do verão para o inverno. Somente em janeiro conseguimos chegar à Madeira, mas aqui todos já esperavam por mim: estudantes e direção. Eles viram a minha confusão, mas reagiram imediatamente com compreensão, tentando ajudar. No início eu andava sempre com um dicionário, pedia para escrever as palavras para conseguir comunicar, mas, acima de tudo, a nossa língua era a música. Os estudantes ajudaram-me em tudo, mostraram-me a ilha e introduziram-me na vida local. Estou muito grata a todos eles. Começar tudo de novo foi difícil, mas o tempo passou e agora vejo tudo isto filosoficamente. Um dia gostava mesmo de escrever um livro de memórias, porque muitas coisas aconteceram: engraçadas, interessantes, chatas. Eu valorizo esta experiência, é muito importante experimentar uma nova atmosfera, conhecer outras pessoas. Gradualmente, fui-me libertando do sofrimento que se tem quando não se entende nada. Estamos num mundo novo, onde cada passo é um teste. No primeiro ano chorei e pensei: trabalho só até o final do ano escolar e volto para casa. Eu também tinha ainda dívidas para pagar em Kiev. Mas os meus alunos disseram: “Se nos deixa, nós deixamos a música” – era muito comovente sentir como eles me amavam. Depois disso eu não poderia deixá-los. Também um consolo para mim foi a música. Eu praticava mesmo até à noite. Uma nova etapa, difícil, começou quando o meu filho foi estudar para Lisboa. Eu não estava muito acostumada a viver sozinha. Até deixei de cozinhar. Sempre cozinhei para a família.
Sentiu o choque cultural quando veio da Ucrânia, que tinha acabado de ter a sua independência, nos duros anos noventa?
Havia algum choque porque aqui tudo era diferente: o nível de vida era mais elevado, o sistema bancário, outra moeda. Na Ucrânia recebemos salários em embalagens, em sacos e cupões e notas e moedas. Aconteceu de tudo. E aqui o dinheiro ia para o banco e eu no início nem sabia o que fazer com cartão multibanco. Mas a isso não podemos chamar um choque verdadeiro. O maior choque foi sentir-me completamente impotente no sentido em que não se conhecem bem os idiomas. Isto é o pior, porque sentes-te constantemente deprimido. Por exemplo, entras numa loja, só para olhar, e o funcionário vem logo perguntar: “O que deseja, minha senhora?” Depois vê que não falas bem nem português nem inglês. Ficas embaraçado e foges… fica um sentimento misto. Por um lado, sentes-te valorizada, porque em Portugal apreciam-nos como músicos; por outro, sentes-te muito limitada. Também, a nível cultural, percebi que a ditadura neste país, na verdade, tinha acabado há relativamente pouco tempo. Foi em 1974, isto é, apenas 20 anos antes de eu ter chegado. Desde essa época houve um grande salto a nível socioeconómico. Fizeram-se muitas autoestradas, túneis, muitos novos automóveis, um grande aumento do conforto. Mas, a nível cultural, não houve o mesmo progresso, embora tenha havido um certo crescimento na educação e em que a Mulher “levantou a cabeça”. O mesmo está agora a acontecer na Ucrânia, onde um certo “sovietismo” condiciona de tal modo a cabeça da nossa geração que nos impede de pensar noutros moldes. Com as novas gerações será diferente, se não ouvirem estas crenças do “homem soviético”. A minha primeira impressão foi que os homens eram mais infantis, opinião essa que se foi modificando com o decorrer do tempo, sendo que achei as mulheres muito mais emancipadas do que na Ucrânia.
Qual é a atitude dos portugueses para com os ucranianos?
Nós fomos bem recebidos em Portugal. Deram-nos a possibilidade de viver, trabalhar. Somos aqui respeitados. Dizem sempre: “Vocês têm uma cultura tão bela, sabem fazer tantas coisas, aprendem a língua tão rapidamente”. Eu aprecio o facto de, quando entramos numa relação mais íntima, querem muito ajudar-nos e conversar. Nós na Ucrânia, quando nos aproximamos de alguém ou queremos ajudar, convidamo-lo logo para nossa casa e oferecemos muita comida. Os portugueses, em vez de receber em casa, preferem ir ao restaurante ou beber um café na pastelaria. Mas eu convidei os meus alunos e colegas para casa e ofereci os pratos ucranianos como varenyky e borshch, numa altura em que não era fácil encontrar beterraba ou trigo sarraceno. Agora muitos portugueses querem frequentar workshops para aprender a fazer varenyky.
Então está a organizar os workshops de culinária?
Se há amigos que querem aprender, organizo. Por exemplo, tenho uma história interessante com minha amiga portuguesa que gostou muito o meu borshch. Eu cozinho borshch sem carne e só no fim adiciono beterraba fresquinha já cozida, por isso o borshch acaba por ter uma cor de beterraba clara, é dietético e muito saboroso.
Então a Margarida aprendeu a fazer o borsch. Também ensinou a mãe e agora, para elas, é um prato de Natal, por ter uma cor natalícia. Também gostou de varenyky, de pysanky e de livros sobre a Ucrânia. Eu contei-lhe que eu e o meu filho fazíamos caminhadas desde que ele era muito pequeno – desde os 6 anos – e também praticávamos canoagem.
Um dia ela decidiu passar à prática e disse-me: “Chega de conversa, vamos mas é comprar bilhetes e ir à Ucrânia fazer e canoagem e caminhadas”. Era verão, antes do Maydan. Foi uma experiencia radical: 5 dias de caminhada e 5 dias de chuva, mas a descida de canoa foi muito interessante. Descemos o rio Ros, até o rio Dnipro e depois ao longo de Dnipro até Kaniv. Aí, subimos até à montanha de Shevchenko, onde o nosso grande poeta está enterrado. Eu preocupava-me “como é que ela vai sobreviver a tudo isto?”
Agora recordamos a viagem com prazer. Agora, aqui, tenho muito amigos. São pessoas que me estão muito próximas espiritualmente. Aqui abri-me e passei a acreditar mais em mim. Antigamente, às vezes, pensava que não conseguia nada, que não tinha jeito para nada. Estou grata a Portugal pois, por via de todos estes sofrimentos, eu encontrei um mundo dentro de mim. Eu não tenho nada de mal a dizer nem sobre a Madeira nem sobre Portugal em geral.
Agora escrevo poesias em ucraniano e em português.
Publica as suas poesias? É possível lê-las na internet?
Não, mas esta publiquei no facebook.
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Há o movimento vital eterno em todo o lado.
É belo, fluente!
Há o nosso pequeno ou grande “ego” que anda confuso.
Está sempre dependente.
Há o pensamento – não tem sossego. Está sempre ligado.
Também dependente.
Há a Beleza! É independente do nosso “ego”,
dа nossa mente!
Há Existência da Natureza!
Está totalmente no Presente!
Há Rosa-flor que é fonte vital do Amor sereno num Mistério do Imenso!
Há o Mundo liberto das crenças da mente!
Há Tudo e Nada.
É UNIVERSO!
Ainda tenho muitos poemas, escrevi bastantes depois de Maydan.
Como é que começou a fazer pysanky?
á os faço há muito tempo. Comecei ainda antes da independência da Ucrânia, quando a nossa cultura era permitida só no papel, mas na realidade tudo o que era ucraniano, religioso, fazia-se só em casa e não se podia apresentar. Por exemplo, o meu irmão, que também é músico, foi acusado e interrogado pelo ao KGB, em 1977, por ter tocado músicas ucranianas.
Também nós, eu e a minha irmã, éramos controladas na Escola Superior de Música, por falarmos a nossa língua. Havia quem nos vigiasse pelo facto de falarmos ucraniano. Mas, quando o poder mudou, muita gente, essas mesmas pessoas, passaram a dizer “Isto é a nossa linda língua ucraniana” entre outras coisas do género.
Penso que até ao desaparecimento desta velha geração, até aparecer uma nova, vamos ter ainda muita confusão. É um processo natural. É muito importante não ter medo. Temos de viver, temos de criar com amor pela nossa terra, e construir uma nova Ucrânia. Tradicionalmente, antes da Páscoa, eu e o meu filho pintamos pysanky. Depois de eu me mudar para a Madeira, mais concretamente depois da morte da minha mãe, a Margarida, uma amiga de quem já falei, ofereceu-me um ovo de avestruz vazio. Este ovo ficou em cima da mesa cerca de três anos. Mais tarde eu fui a Kiev e fui visitar um mestre de pysanky, Oksana Bilous, e pedi-lhe que me ensinasse essa arte de ovos de avestruz de filigrana. Comprei-lhe ovos, um já tinha em casa, e quando voltei comecei a esculpir sozinha. Oksana tinha-me dito que era natural que o primeiro ovo se partisse, mas ainda não aconteceu.
Como se chama essa técnica?
sto são ovos esculpidos. Aliás, Oksana escreveu um livro, uma enciclopédia, com todas as técnicas de pysanky.
Oksana Bilous é a sua professora?
Sim, é minha amiga e professora.
O que é para si criatividade?
Vida é já criatividade, porque cada dia nós criamo-nos, criamos vida e ambiente. Atraímos aquilo de que gostamos, é uma lei da natureza. Eu acredito que na vida nada é por acaso: os amigos são o reflexo dos meus pensamentos. Isto é criatividade, o que criamos à nossa volta. Criatividade, seja musical ou de pysanky, é sofrimento, é elevação, é voo. São asas, independentemente do que possam ter sofrido, que te levantam e te fazem voar. Criatividade é uma grande força. Eu não consigo viver só no quotidiano, sem criatividade. É evidente que para termos criatividade precisamos de inspiração, que às vezes não é fácil encontrar, especialmente em tempos de guerra. Temos de arranjar artimanhas para resgatar a nossa criatividade. Por exemplo, durante dois anos não pintei nada, não conseguia, mas quando me fizeram uma proposta para uma exposição imediatamente agarrei nas pysanky, na música, acabei uma composição que estava incompleta por falta de inspiração. Aí percebi que o mais importante é não parar. Independentemente do que acontece no mundo, nós não devemos parar, não temos esse direito.
Como se mudaram os seus hábitos depois da sua vinda para Portugal?
Tenho amigos que me dizem que não mudei, mas eu vejo-me, retrospetivamente, há 20 anos eu acho que aquela já não sou eu. Mas o caroço fica. Basicamente o que mudou foi a atitude para comigo e para com o mundo. Antigamente eu vivia em tristeza, pensava demasiado no passado, e vivia da felicidade do passado. Agora já não vivo do passado. Agora encaro a minha vida como uma história interessante, um livro. Viras a página e perguntas: o que é interessante na próxima?
Vale a pena colocarmo-nos em relação à vida um pouco no papel do observador. Já me aconteceram coisas graves, como um acidente de viação na Madeira que me levou a ficar dois meses de cama. Agora não vejo isso como uma tragédia, pois aprendi muito com tudo.
A Halyna participa na vida cultural dos ucranianos em Portugal?
Às vezes a comunidade ucraniana convida-me a apresentar concertos, quer em português, quer em ucraniano. Existem outros eventos, mas como o a minha profissão é muito exigente, não posso participar noutros projetos além do meu trabalho.
Qual é o seu sonho?
Aconteceu-me deixar de ter no meu léxico expressões como “ter pena”, “saudades” e “sonhos”. O verbo “sonhar”, neste contexto, significa que te falta alguma coisa, eu não sonho porque considero ter tudo aquilo que preciso. O que vou precisar terei quando chegar o tempo. No entanto, sonho poder esculpir com argila. Quando era pequena adorava esculpir com areia. Eu gosto da criatividade, se Deus quiser ainda hei-de aprender mais coisas.
Gostaria de ter netos?
Gostaria muito de os ter, claro, mas não tenho o direito de sonhar com isso. Trata-se da vida do meu filho, não tenho direito de interferir. Dizem que nós, pais, temos de nos lembrar que até aos 17 anos dos nossos filhos somos muito responsáveis, principalmente a mãe, mas depois desta idade a vida é dos filhos. Podemos aconselhar, se quiserem ouvir, mas não temos o direito de interferir na vida deles.
Na Ucrânia é comum haver uma certa pressão sobre os jovens para constituírem família.
É verdade. É normal achar que a mulher deve casar-se entre os 20 e os 30 anos e filhos/netos são obrigatórios. De facto, não são obrigatórios. O mais importante é criar amor e amar a vida. Não podemos viver com o peso de não conseguir ou de não sermos capazes de algo. Cada pessoa tem a sua missão.
Pensa voltar para a Ucrânia?
Quando alguém me pergunta isso, eu digo que não planeio nada, só vivo a minha vida.
Para mim Ucrânia é como Portugal, isto é, planeta Terra. Eu adoro a minha terra natal, e gosto também de Portugal. Não planeio nada, estou aqui, vivo aqui. Como será depois, havemos de ver. O futuro o dirá. Independentemente de onde o destino nos colocou, temos de amar a vida e tudo o que nos rodeia.
Entrevista conduzida por Galyna Komar
Traduzido do ucraniano por Galyna Komar
Fotografia facultada por Galyna Komar e Halyna Stetsenko